Nosso Blog

Sexo entre carnavais e os portadores de ilusões

Por: Dra. Giovana Del Prette*, psicóloga.

O carnaval acabou e finalmente podemos dizer que “o ano de 2016 começou”. Longe de ser apenas um chavão, essa  velha piada é ilustrativa do grande papel das festas de Carnaval na cultura brasileira. O carnaval é a maior permissão social do ano para fazer, agir e, em última análise, ser aquilo que se quiser ser, antes que o ano comece.

Nesse cenário, as campanhas públicas de prevenção às DSTs têm um poder ridículo, quando comparadas ao poder do samba da Globeleza que, desde 1990, anuncia a chegada do atacadão de mulheres peladas. Chega a ser difícil saber se as chamadas televisivas do MP para o uso da camisinha servem apenas para “enxugar gelo” ou se, pior ainda, servem para lembrar oficialmente aos foliões de que nessa semana o sexo está liberado.

O carnaval é a maior permissão social do ano para fazer, agir e, em última análise, ser aquilo que se quiser ser, antes que o ano comece.

Prevenir DST’s com uso de preservativos requer algum grau de autocontrole. E autocontrole é um dos maiores dilemas da humanidade. Você se depara com ele a todo momento em que faz uma escolha. Já dizia a poetisa: “Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.” Se em condições normais ter autocontrole já é complicado, imagine no carnaval! O uso de álcool e outras drogas desequilibra um pouco mais a balança, dissolvendo na cerveja o que restar de discernimento e bom senso. A briga é tão desleal que as campanhas parecem ter se conformado:
uma delas, com a hashtag #PartiuTeste, parece sugerir que, finda a ressaca, você corra feliz para o SUS e faça um teste de HIV para descobrir se foi ou não sorteado. Não preciso nem mencionar a quantidade de pessoas que irá preferir “não saber”.

Mas essa discussão não deve se restringir apenas ao período do carnaval. O comportamento sexual de risco também existe nesse pequeno intervalo entre carnavais chamado “ano”, que começa agora.
Por quê isso importa? Porque não se muda todo um padrão de comportamento de um país de uma hora para outra, em uma semana, ainda mais com todas as condições desfavoráveis do carnaval. Porque se esse problema não acontecesse no restante do ano, talvez a cultura do carnaval fosse outra e talvez a Globeleza pudesse vir a ser só um capítulo bizarro da história do Brasil (junto com o BBB).

Ou seja, independentemente do carnaval, a pergunta que precisa ser respondida é: por que as pessoas sabem o suficiente sobre HIV e outras DSTs, sabem também como se prevenir, e ainda assim se expõem ao risco em relações sexuais? A dificuldade com autocontrole explica? Sim, mas não totalmente. Vamos às nuances e aos detalhes.

Dificuldade #1: A ilusão do improvável.

Quanto mais um prêmio é imediato e certeiro (sexo já), e a penalidade está longe e improvável (DSTs talvez um dia), menores as chances de se exercer algum autocontrole. Se não fosse assim, ninguém se arriscaria a andar de avião, não é mesmo? E quanto menos ouvimos falar das consequências negativas, mais distantes elas nos parecem. Ninguém sai por aí dizendo: “Dei azar, cara, hoje sou HIV positivo”. Dessa forma, sabemos que existe HIV, mas temos a ilusão de que não acontecerá conosco e nem mesmo com nossos conhecidos, já que “não conheço ninguém que tem”. Ledo engano.

Independentemente do carnaval,  a pergunta que precisa ser respondida é: por que as pessoas sabem o suficiente sobre HIV e outras DSTs, sabem também como se prevenir, e ainda assim se expõem ao risco em relações sexuais? A dificuldade com autocontrole explica? Sim, mas não totalmente. 

Dificuldade #2: A ilusão do tratável.

Mas há um outro perfil de comportamento se delineando nos últimos anos, especialmente entre as novas gerações. Quem não viu morrer Cazuza hoje não tem a mesma percepção do HIV que tinham as gerações anteriores. O fato de haver tratamento faz com que esse se torne um castigo menor, do qual teme-se menos, e portanto arrisca-se mais. Assim, a população sabe que hoje há pouca chance de se morrer “disso”, mas não faz ideia do que é viver “com isso”. Também se torna distante a realidade do risco de outras DST’s das quais muito pouco se fala, como Hepatite B e Hepatite C.

Quem não viu morrer Cazuza hoje não tem a mesma percepção do HIV que tinham as gerações anteriores.

Dificuldade #3: A ilusão do invisível

Pouco se sabe do sofrimento físico e psicológico de quem tem HIV. Portadores sofrem por verem a lipodistrofia modificando lentamente seus corpos, e por reconhecerem só de “bater o olho” quem também faz uso contínuo de antirretrovirais. Portadores sofrem para manter carga viral zero, com efeitos colaterais diários como diarreias, cólicas intensas, vômitos, náuseas, rash cutâneo e pele amarela, só para citar o mínimo. Portadores sofrem a cada vez que tomam suas medicações, sentindo-se culpados e sem poder voltar no tempo para fazer diferente. Vêem-se obrigados a um autocontrole muito mais cruel: escolher tomar os remédios hoje, com todos os seus efeitos colaterais, para evitar um mal maior no futuro.

Na surdina, muitos procuram se relacionar só com quem também tem o vírus, carregando em silêncio o peso do segredo e o medo da mera hipótese de serem rejeitados e estigmatizados. Mas o homem fantasiado da campanha pró-camisinha, cheio de amigos, sorri, inocente. Silêncio: é preciso não incomodar as cores do carnaval com essas verdades sombrias.

Portadores sofrem a cada vez que tomam suas medicações, sentindo-se culpados e sem poder voltar no tempo para fazer diferente. 

Dificuldade #4: O portador de ilusões

Há ainda mais um perfil de comportamento sexual de risco. Embora seja o mais frequente dentro da sinceridade de uma psicoterapia, é o menos abordado pelas campanhas. E talvez até seja, em certa medida, um tiro que saiu pela culatra do carnaval. Explico. Na ânsia de conscientizar para o uso de camisinha no sexo casual, é possível que as pessoas estejam aprendendo a fazer a relação contrária: sexo não-casual faz-se sem camisinha.

Ou, corrigindo a dupla negativa: sexo desprotegido é uma prova de compromisso, de interesse, de confiança, ou mesmo de amor. Especialmente no período entre carnavais, quando a vida volta a ser levada a sério.

Embora o carnaval apregoe a liberdade, na maior parte do tempo as pessoas querem e precisam se sentir seguras. De um jeito ou de outro, buscamos laços afetivos sólidos, relações estáveis, íntimas e duradouras.
E então, para mostrar que o seu interesse é mais do que apenas pelo sexo casual, para mostrar que confiam em seus parceiros e que são confiáveis, homens e mulheres de todas as idades têm adotado práticas sexuais de risco. Não falo apenas de quando já se encontram num relacionamento estável; falo também de práticas em primeiros encontros e até mesmo em relacionamentos extraconjugais “de confiança” (sim, você leu isso mesmo, e é mais comum do que se imagina).

Talvez essa seja uma forma de se iludirem com um “amor líquido”, parafraseando aquele sociólogo. Arriscar-se em relações sexuais virou sinônimo de arriscar-se em relacionamentos íntimos. Afinal, camisinha e folia é coisa para o carnaval…

De um jeito ou de outro, buscamos laços afetivos sólidos, relações estáveis, íntimas e duradouras.

O violista paraense Nilson Chaves escreveu uma música sobre o portador de HIV. Lembrando-me da letra, fui procurá-la na internet. Li, reli e ouvi, pensando o quanto todos somos portadores de sonhos. Contudo, às vezes esses podem se transformar em ilusões, muito além daquelas que criamos sob as máscaras de carnaval. Portamos ilusões quando arriscamos a vida que temos, para fingir viver a vida que queríamos ter.

O Portador (Nilson Chaves)

O portador porta o vírus
E algumas coisas claras:
Um canivete suíço
Uma camisa amarela
Um par d’óculos na cara

O portador porta o vírus
E outras coisas obscuras:
Poemas que ninguém leu
Canções e canções
Que ninguém ouviu
E uma esperança danada

Como moeda em seu bolso
O portador porta a vida
E a morte, seu outro lado
Cara ou coroa? Que importa?
Já conhece essa jogada

Sabe que isso que porta
Não lhe serve para nada
Se com isso não fizer
Aquilo que tá na cara
Do medo da morte, a vida
Do vírus, uma virada

*Dra. Giovana Del Prette é psicóloga especialista em Terapia Analítico-Comportamental. Cursou Mestrado em Psicologia Clínica e Doutorado em Ciências pela USP. Atualmente, é Pós-Doutoranda em Psiquiatria (IPq-USP). No consultório ACACIA Psicologia & Psiquiatria, atende crianças, adolescentes e adultos.

Por: Dra. Giovana Del Prette*, psicóloga.

O carnaval acabou e finalmente podemos dizer que “o ano de 2016 começou”. Longe de ser apenas um chavão, essa  velha piada é ilustrativa do grande papel das festas de Carnaval na cultura brasileira. O carnaval é a maior permissão social do ano para fazer, agir e, em última análise, ser aquilo que se quiser ser, antes que o ano comece.

Nesse cenário, as campanhas públicas de prevenção às DSTs têm um poder ridículo, quando comparadas ao poder do samba da Globeleza que, desde 1990, anuncia a chegada do atacadão de mulheres peladas. Chega a ser difícil saber se as chamadas televisivas do MP para o uso da camisinha servem apenas para “enxugar gelo” ou se, pior ainda, servem para lembrar oficialmente aos foliões de que nessa semana o sexo está liberado.

O carnaval é a maior permissão social do ano para fazer, agir e, em última análise, ser aquilo que se quiser ser, antes que o ano comece.

Prevenir DST’s com uso de preservativos requer algum grau de autocontrole. E autocontrole é um dos maiores dilemas da humanidade. Você se depara com ele a todo momento em que faz uma escolha. Já dizia a poetisa: “Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.” Se em condições normais ter autocontrole já é complicado, imagine no carnaval! O uso de álcool e outras drogas desequilibra um pouco mais a balança, dissolvendo na cerveja o que restar de discernimento e bom senso. A briga é tão desleal que as campanhas parecem ter se conformado:
uma delas, com a hashtag #PartiuTeste, parece sugerir que, finda a ressaca, você corra feliz para o SUS e faça um teste de HIV para descobrir se foi ou não sorteado. Não preciso nem mencionar a quantidade de pessoas que irá preferir “não saber”.

Mas essa discussão não deve se restringir apenas ao período do carnaval. O comportamento sexual de risco também existe nesse pequeno intervalo entre carnavais chamado “ano”, que começa agora.
Por quê isso importa? Porque não se muda todo um padrão de comportamento de um país de uma hora para outra, em uma semana, ainda mais com todas as condições desfavoráveis do carnaval. Porque se esse problema não acontecesse no restante do ano, talvez a cultura do carnaval fosse outra e talvez a Globeleza pudesse vir a ser só um capítulo bizarro da história do Brasil (junto com o BBB).

Ou seja, independentemente do carnaval, a pergunta que precisa ser respondida é: por que as pessoas sabem o suficiente sobre HIV e outras DSTs, sabem também como se prevenir, e ainda assim se expõem ao risco em relações sexuais? A dificuldade com autocontrole explica? Sim, mas não totalmente. Vamos às nuances e aos detalhes.

Dificuldade #1: A ilusão do improvável.

Quanto mais um prêmio é imediato e certeiro (sexo já), e a penalidade está longe e improvável (DSTs talvez um dia), menores as chances de se exercer algum autocontrole. Se não fosse assim, ninguém se arriscaria a andar de avião, não é mesmo? E quanto menos ouvimos falar das consequências negativas, mais distantes elas nos parecem. Ninguém sai por aí dizendo: “Dei azar, cara, hoje sou HIV positivo”. Dessa forma, sabemos que existe HIV, mas temos a ilusão de que não acontecerá conosco e nem mesmo com nossos conhecidos, já que “não conheço ninguém que tem”. Ledo engano.

Independentemente do carnaval,  a pergunta que precisa ser respondida é: por que as pessoas sabem o suficiente sobre HIV e outras DSTs, sabem também como se prevenir, e ainda assim se expõem ao risco em relações sexuais? A dificuldade com autocontrole explica? Sim, mas não totalmente. 

Dificuldade #2: A ilusão do tratável.

Mas há um outro perfil de comportamento se delineando nos últimos anos, especialmente entre as novas gerações. Quem não viu morrer Cazuza hoje não tem a mesma percepção do HIV que tinham as gerações anteriores. O fato de haver tratamento faz com que esse se torne um castigo menor, do qual teme-se menos, e portanto arrisca-se mais. Assim, a população sabe que hoje há pouca chance de se morrer “disso”, mas não faz ideia do que é viver “com isso”. Também se torna distante a realidade do risco de outras DST’s das quais muito pouco se fala, como Hepatite B e Hepatite C.

Quem não viu morrer Cazuza hoje não tem a mesma percepção do HIV que tinham as gerações anteriores.

Dificuldade #3: A ilusão do invisível

Pouco se sabe do sofrimento físico e psicológico de quem tem HIV. Portadores sofrem por verem a lipodistrofia modificando lentamente seus corpos, e por reconhecerem só de “bater o olho” quem também faz uso contínuo de antirretrovirais. Portadores sofrem para manter carga viral zero, com efeitos colaterais diários como diarreias, cólicas intensas, vômitos, náuseas, rash cutâneo e pele amarela, só para citar o mínimo. Portadores sofrem a cada vez que tomam suas medicações, sentindo-se culpados e sem poder voltar no tempo para fazer diferente. Vêem-se obrigados a um autocontrole muito mais cruel: escolher tomar os remédios hoje, com todos os seus efeitos colaterais, para evitar um mal maior no futuro.

Na surdina, muitos procuram se relacionar só com quem também tem o vírus, carregando em silêncio o peso do segredo e o medo da mera hipótese de serem rejeitados e estigmatizados. Mas o homem fantasiado da campanha pró-camisinha, cheio de amigos, sorri, inocente. Silêncio: é preciso não incomodar as cores do carnaval com essas verdades sombrias.

Portadores sofrem a cada vez que tomam suas medicações, sentindo-se culpados e sem poder voltar no tempo para fazer diferente. 

Dificuldade #4: O portador de ilusões

Há ainda mais um perfil de comportamento sexual de risco. Embora seja o mais frequente dentro da sinceridade de uma psicoterapia, é o menos abordado pelas campanhas. E talvez até seja, em certa medida, um tiro que saiu pela culatra do carnaval. Explico. Na ânsia de conscientizar para o uso de camisinha no sexo casual, é possível que as pessoas estejam aprendendo a fazer a relação contrária: sexo não-casual faz-se sem camisinha.

Ou, corrigindo a dupla negativa: sexo desprotegido é uma prova de compromisso, de interesse, de confiança, ou mesmo de amor. Especialmente no período entre carnavais, quando a vida volta a ser levada a sério.

Embora o carnaval apregoe a liberdade, na maior parte do tempo as pessoas querem e precisam se sentir seguras. De um jeito ou de outro, buscamos laços afetivos sólidos, relações estáveis, íntimas e duradouras.
E então, para mostrar que o seu interesse é mais do que apenas pelo sexo casual, para mostrar que confiam em seus parceiros e que são confiáveis, homens e mulheres de todas as idades têm adotado práticas sexuais de risco. Não falo apenas de quando já se encontram num relacionamento estável; falo também de práticas em primeiros encontros e até mesmo em relacionamentos extraconjugais “de confiança” (sim, você leu isso mesmo, e é mais comum do que se imagina).

Talvez essa seja uma forma de se iludirem com um “amor líquido”, parafraseando aquele sociólogo. Arriscar-se em relações sexuais virou sinônimo de arriscar-se em relacionamentos íntimos. Afinal, camisinha e folia é coisa para o carnaval…

De um jeito ou de outro, buscamos laços afetivos sólidos, relações estáveis, íntimas e duradouras.

O violista paraense Nilson Chaves escreveu uma música sobre o portador de HIV. Lembrando-me da letra, fui procurá-la na internet. Li, reli e ouvi, pensando o quanto todos somos portadores de sonhos. Contudo, às vezes esses podem se transformar em ilusões, muito além daquelas que criamos sob as máscaras de carnaval. Portamos ilusões quando arriscamos a vida que temos, para fingir viver a vida que queríamos ter.

O Portador (Nilson Chaves)

O portador porta o vírus
E algumas coisas claras:
Um canivete suíço
Uma camisa amarela
Um par d’óculos na cara

O portador porta o vírus
E outras coisas obscuras:
Poemas que ninguém leu
Canções e canções
Que ninguém ouviu
E uma esperança danada

Como moeda em seu bolso
O portador porta a vida
E a morte, seu outro lado
Cara ou coroa? Que importa?
Já conhece essa jogada

Sabe que isso que porta
Não lhe serve para nada
Se com isso não fizer
Aquilo que tá na cara
Do medo da morte, a vida
Do vírus, uma virada

*Dra. Giovana Del Prette é psicóloga especialista em Terapia Analítico-Comportamental. Cursou Mestrado em Psicologia Clínica e Doutorado em Ciências pela USP. Atualmente, é Pós-Doutoranda em Psiquiatria (IPq-USP). No consultório ACACIA Psicologia & Psiquiatria, atende crianças, adolescentes e adultos.

______________________________________________________________________________________

O texto acima possui caráter exclusivamente informativo. Jamais empreenda qualquer tipo de tratamento ou se automedique sem a orientação de um especialista.

Por: Dra. Giovana Del Prette*, psicóloga.

O carnaval acabou e finalmente podemos dizer que “o ano de 2016 começou”. Longe de ser apenas um chavão, essa  velha piada é ilustrativa do grande papel das festas de Carnaval na cultura brasileira. O carnaval é a maior permissão social do ano para fazer, agir e, em última análise, ser aquilo que se quiser ser, antes que o ano comece.

Nesse cenário, as campanhas públicas de prevenção às DSTs têm um poder ridículo, quando comparadas ao poder do samba da Globeleza que, desde 1990, anuncia a chegada do atacadão de mulheres peladas. Chega a ser difícil saber se as chamadas televisivas do MP para o uso da camisinha servem apenas para “enxugar gelo” ou se, pior ainda, servem para lembrar oficialmente aos foliões de que nessa semana o sexo está liberado.

O carnaval é a maior permissão social do ano para fazer, agir e, em última análise, ser aquilo que se quiser ser, antes que o ano comece.

Prevenir DST’s com uso de preservativos requer algum grau de autocontrole. E autocontrole é um dos maiores dilemas da humanidade. Você se depara com ele a todo momento em que faz uma escolha. Já dizia a poetisa: “Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.” Se em condições normais ter autocontrole já é complicado, imagine no carnaval! O uso de álcool e outras drogas desequilibra um pouco mais a balança, dissolvendo na cerveja o que restar de discernimento e bom senso. A briga é tão desleal que as campanhas parecem ter se conformado:
uma delas, com a hashtag #PartiuTeste, parece sugerir que, finda a ressaca, você corra feliz para o SUS e faça um teste de HIV para descobrir se foi ou não sorteado. Não preciso nem mencionar a quantidade de pessoas que irá preferir “não saber”.

Mas essa discussão não deve se restringir apenas ao período do carnaval. O comportamento sexual de risco também existe nesse pequeno intervalo entre carnavais chamado “ano”, que começa agora.
Por quê isso importa? Porque não se muda todo um padrão de comportamento de um país de uma hora para outra, em uma semana, ainda mais com todas as condições desfavoráveis do carnaval. Porque se esse problema não acontecesse no restante do ano, talvez a cultura do carnaval fosse outra e talvez a Globeleza pudesse vir a ser só um capítulo bizarro da história do Brasil (junto com o BBB).

Ou seja, independentemente do carnaval, a pergunta que precisa ser respondida é: por que as pessoas sabem o suficiente sobre HIV e outras DSTs, sabem também como se prevenir, e ainda assim se expõem ao risco em relações sexuais? A dificuldade com autocontrole explica? Sim, mas não totalmente. Vamos às nuances e aos detalhes.

Dificuldade #1: A ilusão do improvável.

Quanto mais um prêmio é imediato e certeiro (sexo já), e a penalidade está longe e improvável (DSTs talvez um dia), menores as chances de se exercer algum autocontrole. Se não fosse assim, ninguém se arriscaria a andar de avião, não é mesmo? E quanto menos ouvimos falar das consequências negativas, mais distantes elas nos parecem. Ninguém sai por aí dizendo: “Dei azar, cara, hoje sou HIV positivo”. Dessa forma, sabemos que existe HIV, mas temos a ilusão de que não acontecerá conosco e nem mesmo com nossos conhecidos, já que “não conheço ninguém que tem”. Ledo engano.

Independentemente do carnaval,  a pergunta que precisa ser respondida é: por que as pessoas sabem o suficiente sobre HIV e outras DSTs, sabem também como se prevenir, e ainda assim se expõem ao risco em relações sexuais? A dificuldade com autocontrole explica? Sim, mas não totalmente. 

Dificuldade #2: A ilusão do tratável.

Mas há um outro perfil de comportamento se delineando nos últimos anos, especialmente entre as novas gerações. Quem não viu morrer Cazuza hoje não tem a mesma percepção do HIV que tinham as gerações anteriores. O fato de haver tratamento faz com que esse se torne um castigo menor, do qual teme-se menos, e portanto arrisca-se mais. Assim, a população sabe que hoje há pouca chance de se morrer “disso”, mas não faz ideia do que é viver “com isso”. Também se torna distante a realidade do risco de outras DST’s das quais muito pouco se fala, como Hepatite B e Hepatite C.

Quem não viu morrer Cazuza hoje não tem a mesma percepção do HIV que tinham as gerações anteriores.

Dificuldade #3: A ilusão do invisível

Pouco se sabe do sofrimento físico e psicológico de quem tem HIV. Portadores sofrem por verem a lipodistrofia modificando lentamente seus corpos, e por reconhecerem só de “bater o olho” quem também faz uso contínuo de antirretrovirais. Portadores sofrem para manter carga viral zero, com efeitos colaterais diários como diarreias, cólicas intensas, vômitos, náuseas, rash cutâneo e pele amarela, só para citar o mínimo. Portadores sofrem a cada vez que tomam suas medicações, sentindo-se culpados e sem poder voltar no tempo para fazer diferente. Vêem-se obrigados a um autocontrole muito mais cruel: escolher tomar os remédios hoje, com todos os seus efeitos colaterais, para evitar um mal maior no futuro.

Na surdina, muitos procuram se relacionar só com quem também tem o vírus, carregando em silêncio o peso do segredo e o medo da mera hipótese de serem rejeitados e estigmatizados. Mas o homem fantasiado da campanha pró-camisinha, cheio de amigos, sorri, inocente. Silêncio: é preciso não incomodar as cores do carnaval com essas verdades sombrias.

Portadores sofrem a cada vez que tomam suas medicações, sentindo-se culpados e sem poder voltar no tempo para fazer diferente. 

Dificuldade #4: O portador de ilusões

Há ainda mais um perfil de comportamento sexual de risco. Embora seja o mais frequente dentro da sinceridade de uma psicoterapia, é o menos abordado pelas campanhas. E talvez até seja, em certa medida, um tiro que saiu pela culatra do carnaval. Explico. Na ânsia de conscientizar para o uso de camisinha no sexo casual, é possível que as pessoas estejam aprendendo a fazer a relação contrária: sexo não-casual faz-se sem camisinha.

Ou, corrigindo a dupla negativa: sexo desprotegido é uma prova de compromisso, de interesse, de confiança, ou mesmo de amor. Especialmente no período entre carnavais, quando a vida volta a ser levada a sério.

Embora o carnaval apregoe a liberdade, na maior parte do tempo as pessoas querem e precisam se sentir seguras. De um jeito ou de outro, buscamos laços afetivos sólidos, relações estáveis, íntimas e duradouras.
E então, para mostrar que o seu interesse é mais do que apenas pelo sexo casual, para mostrar que confiam em seus parceiros e que são confiáveis, homens e mulheres de todas as idades têm adotado práticas sexuais de risco. Não falo apenas de quando já se encontram num relacionamento estável; falo também de práticas em primeiros encontros e até mesmo em relacionamentos extraconjugais “de confiança” (sim, você leu isso mesmo, e é mais comum do que se imagina).

Talvez essa seja uma forma de se iludirem com um “amor líquido”, parafraseando aquele sociólogo. Arriscar-se em relações sexuais virou sinônimo de arriscar-se em relacionamentos íntimos. Afinal, camisinha e folia é coisa para o carnaval…

De um jeito ou de outro, buscamos laços afetivos sólidos, relações estáveis, íntimas e duradouras.

O violista paraense Nilson Chaves escreveu uma música sobre o portador de HIV. Lembrando-me da letra, fui procurá-la na internet. Li, reli e ouvi, pensando o quanto todos somos portadores de sonhos. Contudo, às vezes esses podem se transformar em ilusões, muito além daquelas que criamos sob as máscaras de carnaval. Portamos ilusões quando arriscamos a vida que temos, para fingir viver a vida que queríamos ter.

O Portador (Nilson Chaves)

O portador porta o vírus
E algumas coisas claras:
Um canivete suíço
Uma camisa amarela
Um par d’óculos na cara

O portador porta o vírus
E outras coisas obscuras:
Poemas que ninguém leu
Canções e canções
Que ninguém ouviu
E uma esperança danada

Como moeda em seu bolso
O portador porta a vida
E a morte, seu outro lado
Cara ou coroa? Que importa?
Já conhece essa jogada

Sabe que isso que porta
Não lhe serve para nada
Se com isso não fizer
Aquilo que tá na cara
Do medo da morte, a vida
Do vírus, uma virada

*Dra. Giovana Del Prette é psicóloga especialista em Terapia Analítico-Comportamental. Cursou Mestrado em Psicologia Clínica e Doutorado em Ciências pela USP. Atualmente, é Pós-Doutoranda em Psiquiatria (IPq-USP). No consultório ACACIA Psicologia & Psiquiatria, atende crianças, adolescentes e adultos.


O texto acima possui caráter exclusivamente informativo. Jamais empreenda qualquer tipo de tratamento ou se automedique sem a orientação de um especialista.