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Seletividade Alimentar: Por que não podemos ignorar esse comportamento?

Dra Giovana Del Prette

Psicóloga infantil, Mestre em Psicologia Clínica, Especialista em Terapia Comportamental, Doutora em Ciências e Pós-Doutora em Psiquiatria. Contato: gdprette@gmail.com / (11)98855-3466 / www.acaciapsi.com.br

21.Abril.2023

A seletividade alimentar, muitas vezes percebida como uma “fase” ou “jeito da criança”, é uma condição que vai além de uma simples preferência por determinados alimentos. Trata-se de um comportamento alimentar desafiador que pode impactar o crescimento, o desenvolvimento emocional e a qualidade de vida da criança e da família.

O que é Seletividade Alimentar?

A seletividade alimentar é caracterizada por:

  1. Repertório alimentar restrito: a criança consome um número muito limitado de alimentos principais, geralmente menos de 20 itens diferentes. Esse número não considera alimentos que ela come muito raramente ou que já comeu e não come mais.
  2. Desinteresse geral por comida: a criança demonstra pouco apetite, interesse ou motivação para comer, mesmo durante as refeições.
  3. Recusa intensa a novos alimentos: rejeita experimentar ou até interagir com alimentos desconhecidos.

A tríade acima leva a prejuízos nutricionais, sociais e emocionais presentes ou futuros, de modo que a seletividade alimentar pode ser diagnosticada como Transtorno Alimentar Restritivo/Evitativo (TARE), um transtorno psiquiátrico incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). O TARE se diferencia de outros transtornos alimentares, como anorexia nervosa, porque não há preocupação com peso ou imagem corporal. Ele é caracterizado por uma alimentação extremamente limitada que pode levar a deficiências nutricionais, perda ou falta de ganho de peso adequado e impactos sociais ou emocionais significativos.

Por que a Seletividade Alimentar deve ser tratada?

Embora a criança possa parecer saudável ou dentro de uma curva de crescimento considerada “normal”, isso não significa que ela esteja recebendo todos os nutrientes necessários para um desenvolvimento pleno. Deficiências nutricionais nem sempre aparecem em exames de sangue e podem ser silenciosas, afetando o sistema imunológico, a energia, o humor e até o desempenho escolar.

Além disso, a criança com seletividade alimentar tende a seguir um padrão rígido de escolhas alimentares que, não raro, é compatível justamente com alimentos mais industrializados, mais ultraprocessados e menos saudáveis, uma vez que estes são mais previsíveis para o paladar seletivo da criança. Por exemplo, um iogurte de morango de uma determinada marca terá sempre o mesmo sabor e textura (além de açúcar adicionado). Em contrapartida, um prato com morangos frescos terá morangos diferentes no sabor, formato e textura. Por isso, a maioria das crianças seletivas pode se alimentar cada vez mais de produtos prontos industrializados, e tende a recusar frutas, verduras e legumes. Quando aceita alimentos preparados em casa, como macarrão, arroz, carne etc, usualmente só come quando é preparado sempre do mesmo jeito.

Impactos emocionais e sociais

  • Ansiedade: as refeições podem se tornar momentos de tensão para a criança e a família.
  • Autoestima: a criança pode sentir vergonha por “não comer como os outros” ou por ser constantemente criticada e/ou questionada.
  • Isolamento social: eventos que envolvem comida podem se tornar desconfortáveis, levando a criança a evitá-los.

Se não tratada, a seletividade alimentar pode persistir na adolescência e na vida adulta, levando a transtornos alimentares, déficits nutricionais crônicos e dificuldades sociais mais marcantes.

O Papel da Acomodação Familiar

Um dos maiores desafios no manejo da seletividade alimentar é resolver o problema da acomodação familiar. Esse termo refere-se ao hábito da família de adaptar suas rotinas para evitar conflitos ou frustrações durante as refeições, perpetuando o problema ao longo da infância e adolescência. Exemplos de acomodação familiar incluem:

(a) preparar apenas os alimentos que a criança já aceita;

(b) evitar comer em restaurantes ou locais em que não se sabe se haverá “o que ela come”,

(c) levar a comida da criança para passeios, para garantir que ela coma e/ou tentar incluí-la no momento da refeição;

(d) apresentar somente texturas que ela já come, por exemplo comida amassadinha e picadinha.

Embora compreensível, essa prática reforça a seletividade, reduzindo as oportunidades da criança de experimentar novos alimentos e ampliar seu repertório alimentar. A acomodação familiar pode mascarar o problema, dando aos pais a sensação de que está tudo bem, já que ela continua comendo somente o que é apresentado, que, por sua vez, é somente o que ela já come, fechando-se um ciclo contínuo de acomodação.

10 Estratégias para Transformar o Cenário

Mudanças concretas no ambiente alimentar e na forma como a comida é apresentada podem trazer grandes resultados ao longo do tempo. Aqui estão algumas dicas práticas:

  1. Crie um ambiente positivo durante as refeições
    • Evite brigas, chantagens ou punições. Isso cria associações negativas com a comida.
    • Ofereça uma refeição equilibrada, incluindo ao menos um alimento que a criança já aceita, mas exponha-a também a outros alimentos incentivando que ela coma.
    • Durante a refeição, não critique sua criança por comer devagar, por reclamar da comida, por “esquecer” a comida na boca ou no prato, ou por colocar porções muito pequenas na boca. Ao invés disso, faça comentários positivos sobre o progresso dela ao longo da própria refeição.
  2. Exponha a criança a novos alimentos de forma gradual
    • Deixe que ela toque, cheire ou até brinque com a comida. A familiaridade reduz a rejeição.
    • Varie sempre, tome cuidado para não reprimir a exploração da criança e elogie toda variação alimentar que ela conseguir fazer.
    • Use apresentações criativas, como cortes diferentes ou pratos coloridos.
    • Introduza as variações de forma progressiva e gradual. Comece variando o corte do alimento e a apresentação. Evolua para características como textura, cor, forma de cocção, tipo, marca, temperos etc. Enfim, passe a variar para alimentos que ela já aceitou no passado e deixou de aceitar. Só então, comece a introduzir variações em termos de alimentos que ela nunca aceitou antes.
  3. Dê o exemplo
    • As crianças aprendem muito observando. Coma os alimentos que deseja que ela experimente, mostrando entusiasmo. Coma as suas refeições junto com as da criança.
    • Se você também é seletivo(a), mude seus hábitos e aprenda, você mesmo, a comer novos alimentos e a reduzir a ingestão daqueles menos saudáveis.
  4. Evite rótulos como “ela não gosta de…” ou “ele não vai comer isso”
    • Rotular a criança de “seletiva” ou afirmar que ela “não come” certos alimentos reforça a ideia de que ela não precisa provar. Não diga isso para sua criança e nem para outras pessoas com sua criança por perto.
  5. Estabeleça uma rotina alimentar
    • Sirva refeições e lanches em horários consistentes. Evite lanches ou bebidas calóricas entre as refeições, para que a criança chegue à mesa com fome.
    • Sente com sua criança para comer à mesa, e neste momento certifique-se de que a TV fique desligada. Não ofereça eletrônicos distratores.
  6. Corte a oferta de alimentos hiperpalatáveis e hipercalóricos
    • Alimentos ultraprocessados, ricos em sal, açúcar ou gordura, podem mascarar os sabores naturais e reduzir a disposição da criança a experimentar alimentos mais saudáveis. Substitua esses itens gradualmente por alternativas naturais e minimamente processadas.
  7. Incentive a mastigação
    • Se a criança tem dificuldade com texturas específicas ou prefere somente alimentos muito macios, introduza alimentos com diferentes consistências de maneira gradual, como legumes levemente cozidos. Isso estimula o desenvolvimento motor e ajuda a superar a rejeição por texturas mais variadas.
  8. Seja consistente: pratique diariamente
    • A exposição a novos alimentos e as mudanças nos hábitos alimentares devem ser diárias, não ocasionais. A repetição e a constância são fundamentais para que a criança se acostume com as novidades.
  9. Explique claramente para sua criança o motivo dessas mudanças
    • Explique para sua criança o que você está fazendo e por que você está fazendo. Fale sobre seletividade alimentar, apresente o tema com vídeos ou com a ajuda de um psicólogo ou psiquiatra. Torne a meta de mudar a seletividade alimentar uma meta da criança também.
  10. Torne a exposição alimentar previsível para a criança
    • Peça ajuda para ela participar das escolhas do que irá experimentar e quando. Torne a variação alimentar previsível até que o novo alimento tenha se incorporado naturalmente à rotina alimentar da criança, desaparecendo a recusa do mesmo.
    • Nas fases iniciais do tratamento, não pegue sua criança de surpresa com alimentos novos que não foram combinados, ou poderá produzir mais ansiedade e recusa.

Buscando Ajuda Profissional

Se as estratégias acima não forem suficientes, buscar a orientação de especialistas é essencial. Além de nutricionistas e terapeutas ocupacionais, o papel do psicólogo comportamental é crucial para lidar com resistências e ansiedades associadas à alimentação. Em alguns casos, o acompanhamento de um psiquiatra infantil pode ser necessário, pois o TARE é um transtorno psiquiátrico e por isso necessita acompanhamento médico, ainda que as principais intervenções sejam da equipe multiprofissional.

Um Olhar Para o Futuro

Tratar a seletividade alimentar na infância não é apenas sobre garantir que a criança coma melhor hoje, mas também sobre construir um futuro mais saudável. Com o suporte certo, é possível transformar a relação dela com a comida, ajudando-a a crescer com mais energia, autoestima e confiança para enfrentar novos desafios.

Seu papel como mãe/pai é fundamental nesse processo. As mudanças na rotina alimentar da casa podem fazer uma diferença imensa na vida do seu filho e de toda a família.