Acácia - Psicologia & Psiquiatria

O que é esse fogo que nos torna humanos?

Capítulo 2 – O que é esse fogo que nos torna humanos

(Da série: Pais comportamentalistas e os benefícios que podem proporcionar a seus filhos)

Por: Dra. Giovana Del Prette*

9 de Dezembro de 2015

Em toda a história da humanidade, em todas as culturas e comunidades do mundo e em todas as épocas, as pessoas sempre tiveram a necessidade de explicar ou entender de alguma maneira a natureza e a si próprias. As mais variadas teorias já foram criadas com esse propósito.

Vamos tomar emprestado o exemplo da compreensão sobre o fogo em diferentes épocas da história. A escolha do fogo não é ao acaso. Produzir fogo levou nossos ancestrais pré-históricos a utilizá-lo também na construção de instrumentos de caça, de moradias mais sólidas, na proteção contra animais e baixas temperaturas, dentre outros poderes que proporcionaram nossa sobrevivência. O domínio do fogo foi certamente uma habilidade divisora de águas na história da humanidade. Em seu interessante livro “Pegando Fogo”, o antropólogo Richard Wrangham defende a tese de que foi o domínio do fogo no cozimento de alimentos que nos tornou humanos!

A mitologia grega narra a bela história do titã Prometeu, que roubou o fogo dos deuses e entregou-o aos humanos, e por isso Zeus sentenciou-lhe o castigo de ser acorrentado a uma rocha e ter seu fígado devorado todos os dias por uma águia. Dentre vários símbolos e metáforas presentes, a história de Prometeu nos mostra o quanto explicar e controlar um fenômeno da natureza é tão fundamental a ponto de um mito ter sido construído sobre isso, e cujo enredo equiparou essa habilidade a um domínio dos deuses. Esse exemplo é ilustrativo também do quanto tendemos a criar explicações, na falta de explicações melhores. Quando não podemos explicar algo, tendemos a fazer uma atribuição ao sobrenatural (ou seja, “além da natureza”), como na mitologia.

Explicações sobrenaturais já foram inventadas para os mais diferentes fenômenos, incluindo o comportamento humano. Houve um tempo em que um surto explosivo de agressividade de uma pessoa seria explicado por uma possessão demoníaca ou bruxaria, o que autorizava que ela fosse oficialmente banida, torturada ou executada. Hoje, felizmente, temos explicações melhores que propiciam desfechos mais felizes.

 

Avancemos agora por muitos séculos em nossa história sobre o fogo. Estamos na Alemanha do começo do século XVII. Nessa época, o químico Georg Stahl criou a Teoria do Flogisto, primeira a explicar reações químicas. Segundo ele, os objetos que pegam fogo “têm muito flogisto”, que seria liberado durante a combustão e absorvido pelo ar. Para Stahl, o flogisto era uma espécie de essência interna que fluía entre os materiais. Explicações internalistas, como a teoria do flogisto, seguem uma lógica muito parecida, pois a tal essência de flogisto seria de ordem metafísica, ou seja, transcendental e especulativa.

Explicações internalistas também têm sido elaboradas ao longo da história para se compreender o comportamento humano. No ano de 170 a.C., por exemplo, um médico romano chamado Galeno criou a teoria de que os ventrículos do cérebro guardam quatro humores (fleumático, sanguíneo, colérico e melancólico), e com isso era possível explicar o temperamento das pessoas.
Essa teoria predominou por mais de mil anos, e até hoje há quem acredite nisso, tanto que você pode achar facilmente na internet testes de personalidade baseados nos quatro humores.

Mais do que isso, há hoje uma infinidade de pseudo-explicações psicológicas baseadas no internalismo metafísico. Sem estender muito o assunto, convém pontuar que classificar é diferente de explicar, mas esses dois métodos podem ser facilmente confundidos. Eventualmente, quando explicamos um fenômeno, podemos também classificá-lo (se nisso houver utilidade), mas classificações internalistas metafísicas estão longe de explicar, e portanto mais longe ainda de serem úteis, e mais perto de serem iatrogênicas. Talvez você não saiba sobre os bastidores da Psicologia, mas a verdade é que ainda hoje há mais explicações internalistas metafísicas na tentativa de se compreender o comportamento humano, do que explicações de fato científicas. Uma parte de nossa atual Psicologia chega a afirmar que ela nem deveria se propor a ser científica!

A Teoria do Flogisto dominou até que, no século XVII, o inglês Joseph Priesley descobriu o oxigênio e o francês Antoine Lavoisier demonstrouexperimentalmente que o ar conteria 21% de oxigênio, que reage com materiais inflamáveis, produzindo não apenas fogo mas também resíduos de mesma quantidade de massa. Assim, não só a teoria do flogisto se tornou desnecessária, como Lavoisier formulou a Lei de Conservação das Massas, que você com certeza um dia aprendeu na escola: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

A Lei de Conservação das Massas é importante em nossa história por dois aspectos. O primeiro deles é que a conclusão de Lavoisier foi produto de método experimental, que até hoje é adotado em todas as ciências naturais, inclusive na Psicologia Comportamental. Basicamente, experimentos são formas de se isolar um fenômeno, para verificar como ele pode afetar outro. Assim, podemos testar se eles estão relacionados, ao invés de criar pseudo-explicações. Foi o método experimental que permitiu ao comportamentalismo testar, por exemplo, qual a relação entre certas consequências do comportamento e sua probabilidade de ocorrência.

O segundo aspecto importante, decorrente direto do anterior, é que Lavoisier propôs uma lei da natureza, por meio de uma generalização empírica. Um filósofo britânico chamado Alfred Ayer assim discorre sobre leis da natureza:

Uma proposição expressa uma lei da natureza quando enuncia o que invariavelmente acontece. Assim, se dissermos que corpos sem suporte caem e admitirmos que a afirmação é uma lei da natureza, queremos dizer que não há, não houve e não haverá um corpo sem suporte que não caia. (…) Essa interpretação também pode ser alargada às leis estatísticas.

De forma análoga, na Psicologia Comportamental a relação entre as consequências de um comportamento e sua probabilidade de ocorrência é uma lei da natureza – chamada de Lei do Reforçamento. Assim, comportamentalistas reconhecem que o reforçamento atua sobre tudo o que fazemos, tal qual a gravidade atua sobre os corpos na Terra.
Por exemplo: aquela pessoa que referi estar tendo surtos de agressividade (não por culpa do demônio, tampouco por ser do tipo colérico) provavelmente tem uma história de vida em que aprendeu a agir agressivamente por força das consequências que produziu. Ora, mas essa é a única explicação que comportamentalistas têm a oferecer? Certamente não! Mas analisar comportamentos a partir de leis derivadas de experimentação traz mais oportunidades de ajudarmos a pessoa.

Retomemos nossa história do fogo. Por suas ideias científicas incomuns à época, Lavoisier foi guilhotinado na revolução francesa, sob justificativa de que “a França não precisa de cientistas”. Fins como esse se repetem na história das ciências pois não é raro que descobertas científicas tenham implicações práticas e políticas suficientemente ameaçadoras para sobrepujarem o valor que o conhecimento em si deveria ter. Guilhotinando ou não Lavoisier, a massa dos corpos continuará a se conservar após a combustão, e comportamentos agressivos continuarão a acontecer se assim produzir certas consequências, que você entenderá nos próximos capítulos.

Muito tempo depois de Lavoisier, os átomos foram descobertos, e em 1905 Albert Eistein formulou a Teoria da Relatividade (E=MC2), que em certo sentido corrobora a Lei de Conservação das Massas, mas vai muito além desta. A fórmula de Einstein permite uma generalização hipotética, ou seja, podemos prever como se comportaria um fenômeno em circunstâncias que sequer são possíveis. Assim, se você viajasse numa nave espacial a uma velocidade próxima da velocidade da luz, ao voltar à terra Terra notaria que as pessoas teriam envelhecido muito mais rápido do que você.

De certo modo, as leis do comportamento também funcionam como generalizações hipotéticas. Assim, se fosse virtualmente possível isolar todas as variáveis presentes e passadas, exceto as envolvidas na Lei do Reforçamento, poderíamos prever se uma pessoa irá ou não se comportar com agressividade. Mais ainda, poderíamos planejar com exatidão como fazer para ajudá-la a agir de modo diferente. Mas obviamente, a aplicação prática da Lei do Reforçamento – e de qualquer lei – não se faz pela mera transposição simplista e determinista.

Da mitologia grega à Teoria da Relatividade, o percurso da história nos mostra que quanto mais as ciências naturais avançam, mais complexa pode se tornar a explicação sobre um fenômeno. Vimos também que a explicação sobre o comportamento humano também vem se modificando na história. Por fim, vimos o quanto a transposição de uma lei natural para a prática não acontece de forma direta, e muito menos simplista. Mas descobrir leis da natureza nos traz domínio sobre ela. Desse modo, entender como funciona o comportamento segundo as ciências naturais nos traz a liberdade de escolher melhor nossas ações, e ajudar mais eficazmente as pessoas. E isso inclui como pais comportamentalistas podem, assim, beneficiar seus filhos, que é o tema dessa série.

O uso que os seres humanos fazem sobre o domínio da natureza pertence ao não menos importante campo da Ética. Podemos conscientemente agir para produzir um mundo melhor, mas infelizmente indivíduos e grupos também podem usar o conhecimento para a destruição. Se por um lado a Teoria da Relatividade foi pré-requisito para a construção da bomba atômica, por outro, não tivemos uma terceira Guerra Mundial, donde espero significar que fazer guerras mundiais não tenha sido suficientemente reforçador. Ao menos também sabemos pelo comportamentalismo que produzir o mal pode, cedo ou tarde, retroagir para o próprio agressor de formas bem pouco desejáveis por ele mesmo.

Agora que você já compreendeu que a Psicologia Comportamental se afina com as ciências naturais, você verá no próximo capítulo alguns exemplos de problemas de relacionamento entre pais e filhos e quais as possibilidades de explicações comportamentais para os mesmos. Até a próxima!

Leia também:

Capítulo 1: Filho não vem com manual, e Super Nanny não é Comportamental!

*Dra. Giovana Del Prette é psicóloga e trabalha com crianças/adolescentes e seus pais desde a graduação em Psicologia na USP (1999-2003), mas já se envolvia na criação de atividades lúdicas psicoeducativas para crianças quando estava no Ensino Médio. Cursou Mestrado em Psicologia Clínica e Doutorado em Ciências pela USP, ambos sobre Terapia Comportamental Infantil. Atualmente, é Pós-Doutoranda em Psiquiatria (IPq-USP), pesquisando sobre Treinamento Comportamental para pais de crianças pré-escolares com TDAH. No consultório ACACIA Psicologia & Psiquiatria, atende crianças, adolescentes e adultos em Psicoterapia e Orientação de Pais. Giovana escreve livros para crianças e ama brincar com seu sobrinho Gabriel, que hoje está com 4 anos.

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O texto acima possui caráter exclusivamente informativo. Jamais empreenda qualquer tipo de tratamento ou se automedique sem a orientação de um especialista.