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Mortalidade entre pessoas com transtornos mentais: Será que estamos vivos?

Por: Dra. Giovana Del Prette

Pela primeira vez, uma pesquisa de revisão sistemática e meta-análise examinou a mortalidade entre pessoas com transtornos mentais, analisando se há diferença no risco de mortalidade para esta população. E os resultados impressionam. O que eu e você, leitor, temos a ver com isso? Talvez você sofra ou já tenha sofrido com Depressão, Ansiedade ou outro transtorno. Talvez você conheça alguém que esteja passando ou já tenha passado por isso, e do jeito que as coisas andam, eu aposto que sim! Talvez você goste de números e de pesquisas, ou só esteja curioso. Mas talvez, também, a história que vou contar sobre essa pesquisa nos diga mais do que números, mortalidade e doenças. Porque falar sobre morte também é falar sobre como se vive.

Sabe, leitor, estudar a conexão entre doença mental e mortalidade é bem complicado, pois muitas pessoas com doenças mentais não morrem exatamente por causa disso. Elas podem morrer por problemas do coração ou outras doenças, infecções, suicídio e outras causas. Por outro lado, outro fator complicador é que as doenças mentais já são, em si, fatores de risco para mortalidade. Ou seja, indivíduos com transtornos mentais têm maiores taxas de comportamentos menos saudáveis, como o uso de cigarros e outras substâncias, inatividade física e má alimentação. E isso, por sua vez, contribui para as altas taxas de doenças crônicas nesta população.

Desde o tempo dos avós, muitos estudos têm sido conduzidos sobre esta temática, mas esta pesquisa é a primeira meta-análise sobre o assunto. Ela foi conduzida na Universidade de Emory, em Atlanta (EUA), pelos pesquisadores Walker, McGee e Druss, e publicada no JAMA-Psychiatry em 2015. Basicamente, imagine você que, na pesquisa de meta-análise, os autores elaboraram um complexo método para buscar todas as pesquisas já publicadas sobre mortalidade e doença mental. E, assim chegaram ao incrível número de 2.481 estudos científicos!

Depois disso, eles utilizaram critérios super rigorosos para filtrar somente os estudos que possuíam métodos realmente confiáveis (e que portanto os resultados merecem todo nosso respeito). Ao fazer isso, dos 2.481 estudos, eles elegeram “somente” 203 artigos – e não que isso seja pouco! – de 29 países diferentes. Em números absolutos: ao todo, os 203 estudos analisados haviam reportado 338.381 mortes.

A equipe da Universidade de Emory queria responder: afinal de contas, tanta pesquisa acumulada nos diz o quê? Então, nessa última etapa – e agora vou estrategicamente pular toda explicação técnica e estatística, ok? – Walker e seus colegas fizeram uma espécie de “síntese” dos resultados de todas essas pesquisas, para descobrir se há um resultado final em comum (consenso entre pesquisas), divergências, particularidades etc.

A mortalidade foi estimada pelos seguintes parâmetros: média da taxa de mortalidade, risco relativo de morte, taxas de risco e anos potenciais de vida perdidos. Os pesquisadores também analisaram a mortalidade classificando-a em “morte por qualquer causa”, “morte por causas naturais”, como doenças crônicas ou agudas, e “mortes por causas não naturais”, como o suicídio ou ferimentos não intencionais. E com esses parâmetros, as pessoas com transtornos mentais eram comparadas a pessoas sem transtornos mentais.
Vamos aos resultados. A taxa de mortalidade foi significativamente maior entre pessoas com transtornos mentais, comparadas à população em geral. A análise dos 203 estudos levou à estimativa de que o risco relativo de morte entre pessoas com doença mental é 2,22 vezes maior do que a população geral. E entre pacientes psiquiátricos internados, este índice se eleva para 7,22!!! (pequeno parênteses e muita calma nessa hora: não, isso não quer dizer que internação causa aumento de mortalidade, ok? Isso diz basicamente que, quanto mais grave a condição do paciente, grave suficiente para precisar de internação como um dos cuidados, maior o risco relativo de morte comparado a quem não tem transtorno).

Dentre os diferentes diagnósticos psiquiátricos estudados, o risco relativo para mortes por quaisquer causas foi significativamente maior para psicose, transtornos do humor e ansiedade. O risco de mortalidade para psicose foi significativamente maior do que para depressão, transtorno bipolar e ansiedade.

Outro resultado da pesquisa foi sobre os “anos de vida potencialmente perdidos”, e esse foi um dos que mais me comoveu. A redução na expectativa de vida de quem tem transtorno mental seria, em média, de 10.1 anos de vida potencialmente perdidos seja qual for a causa da morte. Para causas naturais, a média de anos perdidos foi de 9,6. E para causas não naturais, os números saltaram para 21,6 anos.

O resultado dessa meta-análise é de fato chocante: 14,3% das mortes em todo o mundo (ou aproximadamente 8 milhões de mortes por ano) são atribuíveis a doenças mentais. Se considerarmos que o risco médio de um indivíduo ter qualquer tipo de transtorno mental ao longo da vida é de 26,1% (de acordo com a Organização Mundial de Saúde), esse resultado é um verdadeiro alerta vermelho.

Essa pesquisa aponta para a importância de se acessar a doença mental como uma causa proximal da morte. Para ser ainda mais clara, a conclusão dos pesquisadores é:

“Essas estimativas sugerem que os transtornos mentais estão entre as causas de morte mais substanciais do mundo.” (Walker, MgGee & Druss, 2015, p. 334)

Esse alerta vermelho nos diz que a quantificação e o tratamento do peso global da doença mental devem considerar o seu papel na prevenção da mortalidade. Mas sabemos que a necessidade versus a realidade dos investimentos em saúde pública no Brasil é uma verdadeira tragédia. Mais preocupante ainda é o quanto o estresse e as más condições de vida da maioria da população também contribuem para que fiquemos mentalmente doentes. Se você, leitor, me acompanhou até agora, talvez esteja com a sensação de que não há para onde correr.

O que fazer… do ponto de vista do que está a nosso alcance? Vamos sentar e reclamar até que os números piorem? Já que falei tanto de mortalidade, agora precisamos falar de vida. O filósofo Mario Sergio Cortella disse, certa vez: a vida é curta para ser pequena. E o ponto que quero chegar com você, leitor, é que para cada vida curta, sob qualquer condição e adversidade, há algo a se fazer para que ela seja grande.

Para a vida não ser pequena, Cortella nos diz, ainda, que é preciso:

“Fazer o seu melhor, dentro das condições atuais, até que existam condições para fazer melhor ainda” (Mario Sergio Cortella)

Dentro das condições atuais – as duplas jornadas de trabalho, o burnout nosso de cada dia, a crise econômica, as injustiças e o que mais precisarmos colocar na balança – até que existam condições para fazer melhor ainda, como podemos fazer o nosso melhor para cuidar melhor da saúde mental?

Como podemos cuidar do que é nosso (o nosso corpo)? Será que é fazendo exercícios físicos, nos alimentando bem, tendo horas adequadas de sono? Sim, porque isso é cuidar, com a consciência de que a vida é curta. Mas em que condições? Aquelas que temos, e aquelas que criarmos. O carro caro que pagamos com horas de nossa vida para nos levar até a academia cara pela qual pagamos com mais horas de vida podem ser substituídos pela simples bicicleta funcional, que por sua vez pode ser substituída pela caminhada até chegar ao ponto de ônibus ou metrô mais longe, de propósito, só para se andar um pouco mais, só para se isolar um pouco menos. A comida engolida às pressas, ou para “compensar” a falta de prazer no resto, pode ser entendida como um sinal de que algo está errado. A falta ou o excesso de sono também. O corpo fala e precisamos ouvi-lo.

Como podemos cuidar do que é nosso (a nossa “mente”)? É nos relacionando mais com o que existe no aqui e no agora: eu sou, eu estou; e menos com os tempos verbais hipotéticos: ah, se eu fosse, quando eu for, por que não fui?… Mais sol, parques e encontros significam menos madrugadas mal-dormidas e menos sofás-com-TV que parecem gelatina a grudar nossos corpos e mofar nossas almas, como se fôssemos nós mesmos a personificação da morte, em vida. E em que condições? Aquelas que temos, e aquelas que criarmos. O passeio raro ou a longa viagem que só acontece uma vez por ano e pela qual vendemos parte de nossa vida podem ser substituídos por 52 domingos por ano cheios de gentes e lugares para se ver, em viagens menores, na nossa cidade, na nossa rua ou dentro da nossa casa.
Não é preciso ir muito longe para sair da estática zona de conforto que iguala todos os dias como se fossem um só, tornando de fato inútil repeti-lo tantas milhares de vezes. Basta fazer algo diferente, e não precisa ser um pulo de bung-jump; pode ser um trajeto diferente pro trabalho, uma fruta que nunca provamos, um olhar de interesse que nunca expressamos ou um comentário que nunca falamos antes. Ou, para ser mais simples ainda: basta fazer algo, ao invés de não fazer.

Como podemos cuidar do que é nosso (o nosso mundinho)? Como podemos fazer os nossos dias valerem à pena, até que a soma de dias que se transforme em meses, e a soma de meses se transforme em anos, e nossa vida seja, então, bem sucedida? É fazendo também algo pelos outros. Eu nunca ouvi alguém reclamar por se sentir útil demais! E em que condições? Aquelas que temos, e aquelas que criarmos. Não porque se espera reconhecimento e prestígio, mas porque o bem-estar dos outros é contagiante, e fazer parte disso nos faz nos sentir vivos e deixará nossa marca mesmo quando partirmos. Grandes cargos políticos ou empresariais certamente nos dariam mais poder, mas é na teia de relacionamentos sutil de nosso cotidiano que certamente estamos ensinando e aprendendo algo, até mesmo e principalmente quando não nos damos conta, nas entrelinhas das nossas ações e emoções. O que estamos ensinando e aprendendo? Estamos alinhados a nossos valores mais profundos?

E se nada disso parece suficientemente colorido, porque os castigos da vida foram fortes demais, ainda nos sobra aprender a sermos gentis com nosso próprio sofrimento. Aceitar que a dor tem motivo e faz parte de como estamos, mas não é sinônimo do que somos. Fazer isso, ao invés de julgar, já é cuidar também. E assim, pode ser menos árduo buscar ajuda para si, seja profissional, espiritual, familiar, de amigos ou de pessoas que ainda conheceremos. Em que condições? Aquelas que temos, e aquelas que criarmos. Com a coragem de quem desconfia que o mundo todo não está assim tão bem-resolvido como se mostra nas fotos do Facebook.
E como numa gripe, em que precisamos comer a sopa mesmo sem sentir o sal, às vezes precisaremos fazer o nosso melhor num cenário preto-e-branco, para só depois descobrirmos que foi isso que repintou o sol, e que muito mais gente se aqueceu junto.

A autocompaixão, o cuidar de nossa saúde física e mental e de nosso mundinho nos liberta para compreender a dor do outro e ampará-lo também, certos de que muito depende de nossas ações, mas de que nossas ações não são infalíveis. O que podemos esperar ao final dessa jornada, de todo esse esforço? Na verdade eu desejo, caro leitor, que não precisemos esperar nada. Porque a própria jornada terá valido à pena, dispensando a ilusão do pote de ouro ao final do arco-íris. Teremos bem mais do que “somente” saúde mental e física. Bem mais do que “somente” dez anos a mais de vida e números menos feios em pesquisas futuras. Eu suspeito fortemente que nosso resultado será perceber que nós mesmos quem criamos as tais condições para fazer melhor ainda, transformando a nós mesmos e o mundo ao nosso redor, descobrindo e compartilhando o sentido da vida.

 

Fontes:

Walker, E. R., MgGee, R. E. & Druss, B. G. (2015). Mortality in mental disorders and global disease burden implications: A systematic review and meta-analysis. JAMA Psychiatry, 72(4), 334-341. doi:10.1001/jamapsychiatry.2014.2502

Cortella, M. S. Qual a tua obra?

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O texto acima possui caráter exclusivamente informativo. Jamais empreenda qualquer tipo de tratamento ou se automedique sem a orientação de um especialista.